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Governo Data-Driven: o que é e como chegar lá

9 de novembro de 2023
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    Ana Braga e Glaucio Neves

    1. O Brasil digital

    A sociedade brasileira está cada vez mais digital e conectada. O Brasil é um dos cinco países que mais usam a internet no mundo e o segundo que mais gasta tempo na rede.[1] De 2016 a 2021, os avanços em conectividade em nosso país foram significativos, e o acesso à banda larga nos municípios brasileiros cresceu continuamente desde 2017, alcançando quase todas as cidades em 2021.[2]

    Tudo indica que este é somente o começo de uma história bastante promissora, com a chegada da tecnologia 5G ao Brasil. O 5G promete proporcionar internet móvel ultrarrápida e fazer uma revolução na conexão de máquinas, equipamentos e pessoas. A perspectiva é de que essa tecnologia traga inúmeras oportunidades e transformações nos mais diversos setores, impulsionando ainda mais o desenvolvimento tecnológico e a conectividade no país.

    Com o aumento do acesso e da conectividade da população, a produção de dados aumentou em ritmo acelerado, influenciando a vida das pessoas, das empresas e dos governos. A pandemia recente serviu como acelerador da tendência de transformação digital nas empresas, deixando de ser uma ideia ou um desejo para se tornar um imperativo de crescimento e sobrevivência em um mundo cada vez mais conectado. Dados da pesquisa Raio-X da Transformação Digital,[3] realizada com executivos de empresas brasileiras, revelaram que 98% dos entrevistados têm alguma iniciativa de transformação digital em curso ou em planejamento.

    E no setor público, como anda a agenda de transformação digital? O maior avanço pode ser observado na esfera federal, a partir da implementação da Estratégia Brasileira para a Transformação Digital.[4] O governo federal tem liderado essa pauta nacionalmente por meio da iniciativa Gov.Br.[5]

    No entanto, nos governos subnacionais, a agenda de transformação digital caminha lentamente e de forma desigual. Nos municípios com mais de 200 mil habitantes, o progresso recente é percebido, mas os desafios ainda são muitos, a depender do nível de maturidade em que se encontram a gestão e seus processos.

    De acordo com dados do Mapa de Governo Digital 2022, para acelerar essa agenda as gestões municipais deverão superar obstáculos que vão desde a dificuldade de contratação de soluções inovadoras e a retenção de times de tecnologia até a segurança de dados e a adequação de sistemas legados.

    O avanço da transformação digital na direção do cliente final (cidadão) também é um desafio. Em termos de oferta de serviços digitais, os maiores progressos se encontram nas áreas-meio, tanto na gestão administrativa quanto na gestão fiscal. Ainda é incipiente a presença de sistemas digitais no dia a dia da gestão urbana e da zeladoria das cidades, conforme pode ser observado nos mapas a seguir.

    Figura 1: Avanço da transformação digital nos municípios brasileiros

    Fonte: Mapa de Governo Digital 2022.

    2. A JORNADA DE EVOLUÇÃO DIGITAL DOS GOVERNOS: DE NASCENTE A DATA-DRIVEN

    O estágio de maturidade digital dos governos varia bastante. A jornada de transformação digital é como uma corrida de obstáculos, na qual alcançar o estágio superior implica abandonar hábitos, mudar processos e transformar o modus operandi de trabalho. A transformação digital exige mudar a cultura, o que leva tempo, e requer qualificar e requalificar os servidores públicos em novas competências digitais, além de transformar processos e políticas, muitas vezes analógicos e seculares, nas administrações públicas.

    Existem diversos modelos de maturidade para classificar as organizações em sua jornada de transformação digital. De um modo geral, todos partem de premissas bastante similares, indo desde um estágio inicial até um ponto em que a utilização de dados se torna intensiva, e uma cultura de tomada de decisão embasada em evidências permeia todas as esferas. Neste artigo, utilizamos como inspiração o modelo do instituto Gartner,[6] com algumas adaptações para melhor compreensão do leitor.

    Figura 2: Estágios de evolução da maturidade digital e produção e utilização de dados

    Fonte: adaptado pela Macroplan com base em Gartner 5 Levels of Digital Government Maturity.

    O estágio inicial do modelo, denominado aqui de “nascente”, é aquele em que o governo ainda se encontra na fase da “intenção de fazer”. Nessa fase, os processos ainda são predominantemente analógicos e os dados são produzidos de forma manual e com significativa defasagem temporal. O estágio seguinte é o “iniciante”, que é quando o governo avança com o planejamento do esforço de transformação digital, mas com foco ainda muito concentrado nos processos de gestão e apoio. O terceiro estágio é o “digital”, que é quando o governo avança na direção do “cliente” e oferta produtos e serviços à população. O último estágio é o que chamamos de “inteligente” ou de “governo data-driven”, quando já é possível utilizar os dados para a tomada de decisão visando ao aumento da efetividade das políticas públicas.

    3. O QUE É UM GOVERNO DATA-DRIVEN E QUAIS AS SUAS CARACTERÍSTICAS

    Um governo data-driven é aquele que utiliza dados e evidências no dia a dia para guiar a tomada de decisão e melhorar a eficiência e a eficácia de suas políticas públicas.[7] Alcançar esse nível de maturidade depende mais de mudança de cultura e de práticas de gestão do que de tecnologia. Requer pensar e agir de forma diferente. Adotar um pensamento digital e orientado para dados e evidências pressupõe estar aberto a mudanças e disposto a aprender e a se adaptar a novas tecnologias e ferramentas digitais à medida que elas surjam. Também é importante ter interesse em explorar e compreender as inovações tecnológicas, mesmo que elas possam parecer complexas em um primeiro momento.

    O pensamento crítico é a competência essencial em um governo data-driven. Envolve análise, reflexão, avaliação e interpretação objetiva e imparcial de informações. É a capacidade pessoal e organizacional de examinar cuidadosamente um problema ou situação, compreendendo-os em profundidade, questionando premissas e argumentos, identificando falácias lógicas e tirando conclusões fundamentadas para a melhor decisão possível.

    Nesse sentido, um governo data-driven tem características singulares que o diferenciam de um governo tradicional.

    Figura 3: Características de um governo data-driven

    Fonte: Elaboração Macroplan.

    Característica 1: Coloca o cidadão no centro

    O governo entende as necessidades, preocupações e preferências dos cidadãos, por meio da coleta e análise de dados. Isso permite que crie políticas públicas e serviços públicos mais eficazes e relevantes para atender às demandas da população.

      Característica 2: Orienta-se “a” e “por” dados e evidências

      Um governo data-driven decide baseado em dados e evidências, em vez de intuição ou suposições. Isso permite que seja mais eficaz e preciso na elaboração de políticas públicas que atendam às necessidades dos cidadãos.

      Característica 3: Inova e experimenta sistematicamente

      Um governo data-driven é inovador e experimenta novas ideias para melhorar suas políticas e seus serviços públicos. Encara os erros como oportunidades de aprendizado e é ágil para adaptar suas estratégias com base nas lições aprendidas.

      Característica 4: É transparente

      A transparência é um princípio fundamental para um governo data-driven, pois permite que a sociedade compreenda e avalie as ações governamentais. Tal princípio inclui a divulgação de dados relevantes de forma clara e acessível, a comunicação simples e objetiva do governo e a participação dos cidadãos no processo de tomada de decisões.

      Caracterítica 5: Atua em parceria

      Atuar em parceria é essencial para um governo data-driven, pois permite acessar conhecimentos e recursos adicionais, aprimorar a qualidade das políticas e dos serviços públicos e levar a uma maior aceitação a implementação das políticas pela sociedade.

      Essas características singulares, quando praticadas por governos de forma articulada, têm o potencial de gerar benefícios sociais e econômicos relevantes, com melhor alocação de recursos e maior precisão na definição e implantação de políticas públicas.

      4. O POTENCIAL DE GERAÇÃO DE VALOR PÚBLICO DO GOVERNO DATA-DRIVEN

      A transformação digital em governos é uma tendência capaz de viabilizar agendas nacionais e fomentar o desenvolvimento socioeconômico de um país. Com a promessa de promover uma gestão mais ágil e alinhada às necessidades da população, a ascensão do governo digital torna-se um caminho estratégico para a melhoria do setor público em uma sociedade cada vez mais digital e conectada.

      Para serem efetivos, os projetos de governos data-driven precisam criar valor público e fornecer melhores serviços à população, mais inclusão, maior transparência e mais participação, além de promover a democracia.[8]

      À medida que os governos digitais amadurecem, passam a usar dados para tomar decisões mais informadas. Isso permite que adotem abordagem holística e compreensiva dos problemas públicos, levando a melhores políticas e resultados.

      O sucesso em entregar valor público para a sociedade está intrinsecamente ligado à capacidade de tomar decisões precisas e oportunas. Seja no contexto de um profissional de saúde realizando um diagnóstico mais acurado, seja no âmbito de um gestor público da área de planejamento formulando programas de combate à pobreza, a tomada de decisões requer o acesso a informações corretas no momento adequado para que escolhas informadas sejam feitas.

      Quando as políticas não são fundamentadas em dados sólidos, elas podem atrasar a superação dos desafios originais. A ausência de embasamento robusto abre espaço para que as políticas sejam influenciadas por grupos de interesse, muitas vezes deixando de atender àqueles que mais necessitam.[9]

      A figura a seguir esquematiza de forma clara como a combinação entre os principais objetivos das políticas públicas e as melhorias na gestão se relaciona com a intensidade do uso de dados e evidências no processo de tomada de decisão.

      Figura 4: Geração de valor público a partir do uso sistemático de dados

      Fonte: Elaboração Macroplan.

      5. FATORES CRÍTICOS PARA A IMPLANTAÇÃO DE UM GOVERNO DATA-DRIVEN

      A agenda estratégica a seguir propõe um conjunto de fatores críticos, não exaustivo, para orientar os gestores públicos no processo de implantação de um governo data-driven, considerando as especificidades de cada contexto e as necessidades de cada localidade.

      Figura 5: Fatores críticos para a implantação de um governo data-driven

      Fonte: Elaboração Macroplan.

      Fator 1: Mapear os desafios finalísticos orientadores dos processos decisórios

      O primeiro passo para a implantação bem-sucedida de um governo data-driven é mapear os desafios finalísticos. Esses desafios são os principais problemas ou questões que precisam ser abordados para que o governo alcance seus objetivos finais e produza resultados relevantes para a população.

      Fator 2: Identificar e priorizar as lacunas de desenvolvimento

      Identificar e priorizar as lacunas de desenvolvimento para a implantação de um governo data-driven é essencial para garantir que a transformação seja bem-sucedida e o governo possa utilizar dados de forma eficiente. As lacunas de desenvolvimento podem ser de naturezas diversas, tais como: cultura organizacional, com a identificação de fontes de resistências e focos de mudança; infraestrutura tecnológica; capacidades de coleta, armazenamento e processamento de dados; ou lacunas legais e regulamentares.

      Fator 3: Organizar o suporte tecnológico adequado

      Envolve a implementação de tecnologias apropriadas que permitam a coleta, o armazenamento, o processamento e a análise de dados de forma segura e eficaz. Para isso é necessário realizar uma análise detalhada das necessidades tecnológicas do governo, com a identificação dos requisitos específicos de dados de cada área governamental, das tecnologias existentes e de suas limitações, bem como das demandas futuras previstas.

      Fator 4: Implantar amplo processo de formação de lideranças

      Líderes bem preparados são essenciais para garantir que a cultura data-driven seja adotada em toda a administração pública. Líderes capacitados têm uma visão estratégica mais clara sobre como os dados podem ser utilizados em tomadas de decisão e na busca de melhoria nos serviços públicos. Eles compreendem o valor dos dados como recursos estratégicos e são promotores de mudança, incentivando seus times a utilizar evidências em suas atividades diárias.

      Fator 5: Mudar processos e rotinas

      A transição para uma abordagem data-driven requer uma mudança significativa na forma como o governo coleta, gerencia e utiliza dados em suas operações diárias. Processos e rotinas bem organizados podem facilitar a coleta, o armazenamento e o acesso a dados relevantes. Ao incorporar dados em processos e rotinas, é provável que insights valiosos sejam identificados, potencializando as oportunidades de melhoria e inovação em diferentes áreas da administração pública. Também significa mudar os processos críticos do governo para orientá-los em direção a dados e evidências.

      Fator 6: Construir e disseminar casos de sucesso

      Casos de sucesso são exemplos concretos de como a utilização efetiva de dados resulta em benefícios tangíveis para a administração pública e a população em geral. Ao compartilhar os casos, outros órgãos do governo e líderes se inspiram e se motivam a adotar a mesma abordagem para gerar um ciclo virtuoso de mudanças. Também servem como modelos a serem seguidos, promovendo boas práticas e direcionando os esforços de outros órgãos tendo em vista alcançar resultados semelhantes. Além disso, demonstram, na prática, o compromisso do governo com a abordagem baseada em dados.

      Fator 7: Organizar a governança decisória

      A governança decisória refere-se à estrutura e aos processos estabelecidos para que se possam tomar decisões estratégicas e operacionais no governo. A fim de promover a abordagem data-driven, é importante garantir que a governança seja adequada ao lidar com dados, análises e informações baseadas em evidências. Para que isso seja possível, é preciso atenção aos seguintes aspectos:

      a) Estabelecer uma estrutura de decisão clara, com papéis e responsabilidades bem definidos;

      b) Designar responsáveis com conhecimento e experiência em gestão de dados;

      c) Desenvolver regras e políticas claras sobre a coleta, o armazenamento, o compartilhamento e o uso de dados no governo;

      d) Encorajar a colaboração entre diferentes órgãos e departamentos;

      e) Estabelecer critérios objetivos para orientar a tomada de decisões;

      f) Implementar mecanismos de monitoramento e avaliação; e

      g) Fomentar uma cultura de aprendizado contínuo.

      Fator 8: Alocar recursos

      A transformação para uma abordagem baseada em dados requer investimentos financeiros em tecnologia, capacitação de pessoal, infraestrutura em outras áreas que permitam habilitar e sustentar a mudança. Isso envolve identificar as áreas prioritárias que requerem investimento em dados e garantir que os recursos sejam direcionados de acordo com as necessidades reais. Implica, muitas vezes, mudanças de sistemas legados, além da contratação de softwares de análise, design e mudanças de infraestrutura tecnológica. Dependendo das necessidades específicas do governo, pode ser necessário contratar especialistas em ciência de dados, análise estatística, engenharia de dados e outras áreas relacionadas que requerem competências especializadas.

      Fator 9: Direcionar incentivos

      Os incentivos financeiros e não financeiros adequados encorajam gestores públicos, servidores e outras partes interessadas a se envolver ativamente na utilização de dados para tomar decisões e melhorar a eficiência das políticas públicas. Reconhecer e premiar órgãos e líderes que obtiverem resultados positivos com o uso de dados é um fator de indução que pode gerar ciclos virtuosos para a implantação. Definir metas e indicadores de desempenho relacionados ao uso de dados em diferentes áreas do governo também gera resultados concretos, incentivando a adoção de práticas data-driven e a promoção de uma cultura orientada por evidências.

      Fator 10: Construir uma estratégia de implantação em ciclos

      A estratégia de implantação em ciclos permite que o governo alcance resultados de forma incremental, aprenda com as experiências e faça ajustes conforme avança no processo. É importante definir metas claras e específicas para cada ciclo de implantação, alinhadas com a agenda estratégica do governo e mensuráveis para permitir a avaliação dos resultados alcançados. Avaliar os riscos potenciais associados à implantação de cada ciclo e desenvolver planos de contingência para lidar com eventuais desafios e obstáculos é uma boa prática que precisa ser observada.

      É relevante ressaltar que essa agenda de fatores críticos não se encerra nos dez fatores aqui descritos. A implementação de um governo data-driven é um processo complexo e abrangente que envolve uma série de fatores críticos para ter sucesso e requer persistência e aprendizado contínuo ao longo do tempo. A colaboração entre diferentes setores, a cultura organizacional, a governança decisória e a capacitação de líderes e equipes são aspectos fundamentais para o avanço efetivo, rumo a uma administração pública mais eficiente e centrada em dados.


      [1] Digital 2021: Global Overview Report, 2021.

      [2] Painel de Cobertura Móvel e Painel Meu Município Anatel, 2021.

      [3] Raio-X da Transformação Digital no Brasil em 2021: principais dados e insights. MIT Technology Review.

      [4] A Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital) foi lançada em 2018, via Decreto no 9.319, para fornecer mais um canal de integração entre o então Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e a sociedade, de modo a garantir a ampla participação social nesse processo, enfatizando, principalmente, a definição de ações estratégicas prioritárias.

      [5] A plataforma digital Gov.Br, que começou a funcionar no dia 31 de julho de 2019, é um espaço de relacionamento entre o cidadão e o governo federal brasileiro.

      [6] Gartner 5 Levels of Digital Government Maturity.

      [7] Adaptado pelos autores de McKinsey Global Institute: Smart Cities: Digital Solutions for a more Livable Future, 2018.

      [8] Twizeyimana, Jean; e Andersson, Annika. “The public value of E-Government – A literature review”. Government Information Quarterly, v. 36, no 2, february, 2019. DOI: 10.1016/j.giq.2019.01.001.

      [9] Morelli, Gustavo; e Fontes, Adriana. “Inteligência de dados para a formulação e a gestão de políticas sociais no século XXI”, in Giambiagi, Fabio (org.), O futuro do Brasil. São Paulo: Atlas, 2021.


      Elaboração

      Autores: Ana Braga e Glaucio Neves

      Revisão de texto: Kathia Ferreira

      Projeto gráfico: Luiza Raj e Tatiane Limani